"Comecei a folhear minha vida desde os primeiros anos partilhados com Claude. Levei para a vida ativa de adulta o método usado durante o período de espera da infância e que não havia me decepcionado, e adquiri o hábito de intercalar o desenrolar de meus dias com constantes e elaborados sonhos diurnos. Eles participam a tal ponto do meu equilíbrio que estou convencida, por exemplo, de que minha inaptidão para aprender a dirigir carros se deve a uma vontade instintiva de dedicar aos sonhos esses momentos tão perfeitamente apropriados que são os deslocamentos nos transportes em comum. Passivo, cativo, o corpo fica tão perfeitamente abandonado quanto durante o sono, enquanto reservamos à inconsistente representação de nós mesmos, com a qual o substituímos, uma posição quase sempre melhor, mais bem controlada do que nos sonhos noturnos. Aliás, quem, ao sair de um sonho ruim, nunca tentou prolongá-lo, para poder corrigir a impressão nefasta, com o happy end de um devaneio consciente ou semi-inconsciente? Todos aqueles que compartilham comigo essa tendência sabem o prazer que tiramos das janelas abertas, na altura do metrô de superfície, e que nos mostram sem pudor flashs de intimidade, das fachadas, com seu reverso secreto, ao longo das quais deslizamos quando atravessamos de carro uma cidadezinha do interior, das conversas entre nossos vizinhos no compartimento de um trem, nas quais nos intrometemos fingindo que estamos dormindo. Por mais breve que tenha sido a visão, por mais fragmentada que seja a percepção de nossos companheiros de viagem, uma minúscula porção de nós mesmos também é arrancada e, como essas câmeras de televisão indiscretas, que fingimos serem manipuladas por um operador invisível, continua penetrando no interior do apartamento parisiense, da casa do interior, da briga familiar no banco ao lado. O sonhador difrata sua vida. O mundo desenrola diante de seus olhos tantas imagens atraentes, ou perigosamente curiosas, que ele gostaria de refletir todas, e coloca-as em perspectiva, isto é, aprofunda-as e enriquece-as. Uma teatralização espontânea faz com que, em alguns segundos, ele vá morar naquele apartamento, naquela casa, mesmo que eles sejam o extremo oposto de seu gosto; "Faço parte da vida dessa família", ele gosta de imaginar, percorrido por um arrepio, se a discussão entre essa última revela valores dos quais ele sempre fugiu. De certo modo, os pais de uma criança sonhadora têm razão de temer que mais tarde ela não tenha personalidade, porque o que se entende geralmente por isso é "personalidade única", e, de fato, o sonhador prefere ser várias pessoas, viver várias vidas, muitas das quais têm a mesma consistência e a perenidade de um grão de poeira que uma corrente de ar deixou por acaso na entrada de uma casa. Por outro lado, estamos enganados ao acreditar que aquele que devaneia se afasta do mundo, pois quase sempre suas outras vidas o colocam, pelo contrário, em empatia com ele. (...) "
Trecho do livro "A outra vida de Catherine M.", de Catherine Millet (Ediouro, 2001)