Hoje o dia já começou um pouco mais pesado que o normal. A garganta arranhava por conta do início de um resfriado e a alma ardia num misto de sentimentos difíceis.
Desde fevereiro eu trabalho em um site de notícias. O Jornalismo, até então renegado como um filho bastardo, ocupou meus dias e noites, e passou a ser mais uma das coisas que me movem. Mas como tudo na vida, essa é uma profissão repleta de ônus e bônus, com diversas pitadas de surpresa.
Todos os dias eu acordo e não sei como vai ser o meu dia. Não faço ideia de quais notícias terei que escrever, com quais pessoas terei que falar, sobre quais assuntos terei que tratar. Como disse há algum tempo, fiz Letras e lidei por alguns anos com autores mortos, que sobrevivem em estantes empoeiradas; mas agora, resgatei o Jornalismo e lido diariamente com pessoas vivas, pulsantes, com energias que circulam e me afetam cotidianamente.
Mas nem por isso deixei de lidar com a morte. Ao contrário, talvez eu nunca tenha ficado tão próxima dela, e com a quase-obrigação de me manter firme diante de todo o espectro que ela carrega ao seu lado.
Hoje o dia começou um pouco mais pesado que o normal. Abri os olhos e fui checar as pautas que me esperavam, quando me deparei com a imagem de uma moça baleada no meio fio. A primeira coisa que reparei foi as pessoas em volta dela com uma naturalidade que me assustou, seguida pela segunda coisa que foi imaginar a pessoa ali, que sacou o celular do bolso e fez o registro. Preciso dizer que a morte nunca foi um assunto natural para mim. É preciso dizer que minhas condições sociais me afastaram de balas perdidas e de acordar com sangue respingado na parede. Portanto, ver a composição dessa cena mexe com todos os meus nervos e sentimentos.
A notícia era a seguinte: a moça, uma jovem de 22 anos, havia tentado assaltar um estabelecimento comercial com mais dois amigos em um bairro de Assis. A linguagem denuncia toda a falta de aproximação. A linguagem da "imparcialidade" de quem conta os fatos para que os outros saibam e a notícia circule. E eis o ponto: eu sabia que essa seria uma das notícias mais lidas do dia e, a depender da tranquilidade do resto da semana, ela repercutiria até a próxima grande tragédia.
As pessoas leram e comentaram coisas como "bem feito", "menos uma", "bandido bom é bandido morto", e mais uma infinidade de palavras que me arregalam os olhos. Além de toda a naturalidade já dita anteriormente, os discursos de ódio não possuem limites.
Hoje o dia começou um pouco mais pesado que o normal. Diariamente sou obrigada a conviver com casos parecidos e diariamente sou obrigada a lidar com a incredulidade. Os deuses do Jornalismo que me perdoem, mas ainda está para raiar o dia em que situações como essa não me abalem. Não posso me dar ao "luxo" de deixar de fazer o meu trabalho da melhor forma que eu puder, mas ninguém pode me impedir de sentir e me compadecer por uma moça tão jovem estirada no meio fio como se ela nada fosse. Ninguém pode me impedir de ser humana antes de ser jornalista; de ser otimista antes de ser jornalista; de ser alguém que tem diversas críticas sociais antes de ser jornalista. Enfim... ninguém pode me impedir.
Hoje o dia começou um pouco mais pesado que o normal e certamente isso vai ecoar, seja amanhã ou depois. Vou dormir pensando que, apesar dela também ter ameaçado a vida de outras pessoas, o trajeto para que ela chegasse até o fim da linha também foi ameaçador. Que nada nos impeça de sermos mais humanos, para quem sabe a gente possa naturalizar cada vez menos a grande espetacularização da tragédia.
JORNAL DA MORTE