sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Desejo

Vontade de dormir sem peso na consciência, sem preocupações que não deixam a mente descansar, sem despertar assustado. Vontade de pisar na terra, pés descalços, ar puro, correr até cansar, brincar no balanço, descer no escorregador, caminhar entre as árvores, sentir o vento enquanto tem calor, fazer piquenique, ler um livro no parque, andar de bicicleta, deitar para olhar o céu, ficar encantada pela lua, procurar reflexos na água, fotografar, soltar pipa, subir na árvore, rever quem está longe, descomprimir o peito apertado de saudade, conhecer pessoas novas, visitar lugares novos, escrever um livro, pintar um quadro, brincar com argila, fazer bolo de chocolate, receber os amigos, confabular até a língua cansar, olhar nos olhos o mais fundo possível, aprender a costurar, brincar de boneca, amar, jogar as chaves fora, abrir as janelas, escancarar as portas, deitar na sacada, olhar o horizonte, assistir a filmes atracada a um pote de pipoca, estar bem acompanhada, ter amores por perto, ganhar cafuné, dormir no colo, deitar na rede, comer macarronada no domingo, abraçar até dois tornarem-se um só, deixar a mente fluir, permitir que a vida viva, viver com ela, aprender a dançar, tomar cerveja, comer amendoim de boteco, jogar sinuca, voar, ter asas, poder sumir quando quiser, fazer retiro espiritual na Conchinchina, estreitar o querer e o poder, saber que dá para encarar, chutar o balde, mudar de casa, trocar os móveis, diminuir os aparatos, cortar o fio da conexão banda larga, unir os meus fios de cabelo aos seus, brindar com copos, juntar os corpos, praticar mutualismo, tomar banho de chuva, sentar no meio da rua e chorar, gritar até ficar rouca, libertar os fantasmas, saber ter e deixar livre, saber ir e voltar, jantar à luz de velas, ligar o som, apagar a luz, fechar a porta, sussurrar ao pé do ouvido, morar sozinha, ver o sol nascer após uma noite bem vivida, sentir saudades, poder de novo e sempre, sentir a essência pessoal de cada um, agir, saber recuar, desconhecer meus limites e testar todos, alcançar o êxtase, ter êxito, praticar o êxodo, andar sem saber para onde, receber a surpresa ao virar a esquina, fazer do tempo um amigo, dizer adeus à falta de tempo para o que e quem é importante, descobrir todo o mundo que eu não conheço. Ai, que vontade!



- Ao caríssimo Vitor, que fez com que seus planos de férias animassem os meus. E mesmo que não concretizados, os desejos já estão todos acordados, à flor da pele e dos pés, que hão de sentir a água.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Fim

O fim estava próximo e ela sentia seus primeiros indícios. O dia morno que de repente via-se entrecortado pelo vento gélido. O sol que esquentava sua pele perdia-se em meio as nuvens já cinzas. As canetas, instrumentos dos mais úteis para suas necessidades, perderam a capacidade do traço. Os livros terminaram e suas histórias chegaram ao fim. Os papéis ganharam o tom amarelado, tom de tempo que passou. Os bolsos esvaziaram-se. A mochila carrega apenas lembranças dos lugares pelos quais passou. O colchão esconde as noites mal dormidas, as marcas dos corpos que ali estiveram, o suor que ali deixaram e as palavras sussurradas no silêncio. A pilha do relógio acabou e o tempo está parado. O lençol acordou frio, sem o calor dos que ali não estiveram dessa vez. Os filmes repetem-se incansavelmente, sempre com o mesmo fim e, quem sabe, o mesmo intuito. Os móveis estão repletos de pó. Na televisão, sempre as mesmas bobagens e fórmulas. As flores no quintal foram trocadas pelo plástico, que nunca morre, nem exige cuidados. As cartas deixaram de ser esperadas ao portão, mas chegam diante de uma tela de plasma. O sofá não recebe mais visitas. O chão sente falta dos pés descalços. O barulho das panelas deu lugar ao apito do microondas. Os remédios ganharam tarjas. Realização traz logo em seguida o profissional. O destino ganhou tantos outros donos que não ela mesma. Nos porta-retratos não há mais fotos. Os álbuns de família já não existem mais. O corpo já não treme mais de emoção, mas de frio. As mãos já estão doloridas e ressecadas pelo tempo. A pele perdeu o toque suave. Os músculos se retorcem e pedem arrego. Os pés lutam para sustentarem o corpo, latejando de dor. Os olhos só desejam se fechar. O coração pulsa com o desespero de quem tenta sobreviver. A saudade apertou tanto que a respiração nunca mais foi a mesma. Hoje os pulmões se enchem com cuidado, o peito não mais estufa, o corpo não mais se expande. A saudade apertou tanto que uma lágrima rolou e não deu para aguentar. Acabou.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O imperceptível

Era tudo o que as 24 horas de um dia comportavam. Nem um instante a mais, nem um instante a menos. Sua vida existia diariamente, sempre começando de novo. Desconhecia o passado. Futuro nunca houve. O presente era sua única chance. Não sabe como nasceu, como eram seus pais, quem eram seus amigos mais antigos. Nem mesmo sabia quem era ela mesma. Nada prolongava-se o suficiente para aprofundar-se. A própria vida era muito fugaz, escorregadia, fluida e acabava assim! quando menos se esperava. Brincava um pouco de Cinderela, que após a meia noite e os badalos do sino tinha todo o encanto desfeito. Não importava o que estivesse acontecendo. Morria ali mesmo, para depois acordar e começar tudo de novo, sem continuidade. Pequenas vidas divididas em pequenos dias. A chance de ser várias e o risco de não ser nenhuma. Quem era ela? Nem ao menos nome, muito menos sobrenome. Sua identidade era a maior novidade do dia. Às vezes acordava Joana, às vezes acordava Maria, mas nunca sabia o que o outro dia lhe reservava. Para ela não havia outro dia. A continuidade era algo estranho que as outras pessoas falavam por ai. "Amanhã", "ontem"? Palavras inexistentes no seu dicionário. O livro da sua vida chamava-se "Diário", que nem sempre começava com um "Querido Diário...". Afinal, nem todas as suas identidades sabiam o que eram sentimentos. Há alguns que necessitam de tempo. Devem ser plantados, cultivados, na paciência de crescer aos poucos. Mas ela não tinha tempo de espera. Seu tempo corria. O espelho denunciava. A pele, que antes era tão lisa, passou a ganhar marcas. Marcas cavadas sutilmente, como artifício dos dias para mostrarem que passam. Ah, como passam! Passarão até chegar o momento de acabarem realmente. O dia em que a vida não mais acordar para a vida. O dia em que definitivamente não haverá mais futuro e o passado ficará perdido em alguma curva, enterrado por acaso em alguma esquina, como indigente que jamais existiu para a vida.

domingo, 16 de novembro de 2008

Monocromático


Não sabia ver o lado bom da vida. As coisas tinham quase sempre o tom acinzentado. Era como se sempre chegasse atrasada. Tudo já havia sido quando ela se aproximava. Vivia das sombras do que um dia foi, correndo sempre atrás de vultos que possivelmente pudessem levá-la a conhecer outras tonalidades. Não é possível dizer que havia esperança nessa corrida. Corria simplesmente por hábito. Um dia ensinaram que era preciso ser feliz e, como de costume, acatou a ordem. Buscava a felicidade como algo desconhecido. Não sabia o que era, como era, porque era. Mal tinha a capacidade de imaginar. Sua mente não conseguia ir muito longe, estava sempre amarrada. Era como se corresse atrás do próprio rabo, sem nunca conseguir alcançá-lo. O lado colorido da vida era engolido pela escuridão. Os vitrais eram sem cor. O tom mais próximo do nada encobria a tentativa das cores se manifestarem. Os olhos da pobre menina apenas conheciam o preto no branco. Sua vida era um enorme contraste, principalmente quando junta com as demais. Era como um fundo para as outras, que sempre estavam por cima da sua, fazendo dela o plano mais longe de ser visto. Em meio as outras cores os seus tons ficavam invisíveis. Amarelos, vermelhos, azuis e uma infinidade de outras cores saltavam aos olhos de quem estivesse ali, enquanto o branco e o preto desapareciam, com marcas imperceptíveis a olhos desatentos. Mas o mundo anda mesmo desatento, e ela sabe disso. Não só sabe como sente. Olhares que mal se cruzam, mal se fixam, mal se trocam. Aos poucos a velocidade aumenta sem que se perceba mais. Corre, voa, salta. Na velocidade da luz tudo fica mais difícil de ser sentido, degustado, apreciado e digerido. A felicidade da pobre menina saltava nos dias de chuva, quando a luz refletia os pingos d'água e ela podia chegar mais próxima ao brilho. Seus olhos eram opacos, mas a pobre encantava-se com os pontos luminosos que despencavam do céu. Porém, passado esse momento de êxtase, ela continua correndo atrás dos vultos. Corre até que o corpo peça arrego. Então desaba em um canto qualquer, se refaz como pode, fecha os olhos para a vida como quem morre e quando volta a si recomeça de onde parou. Mas não importa onde pare nem de onde continue, o lado bom da vida jamais mostra sua face a quem não sabe enxergá-lo. Não chega avisando de si mesmo. É discreto, disfarçado, quase sempre rodeado por aquilo que afasta os mais desavisados. A pobre menina está presa no labirinto, correndo, esgotando suas energias. Logo mais será hora de desabar novamente e, mais uma vez, começar tudo de novo.

Devaneios desconexos às 3:45 AM

Já faz algum tempo que a minha visão sobre céu e inferno se modificou. Tudo aquilo que as igrejas teoricamente pregam dissipou-se e o que restou foi apenas o que o mundo de agora comporta. Não sei bem se o inferno são os outros, mas acredito que tanto ele quanto o céu são aqui, bem aqui. E mais incrível do que isso é a capacidade que a vida tem de ir do céu ao inferno em tão pouco tempo, com uma facilidade inacreditável. Em apenas alguns instantes o pacífico pode tornar-se caótico e o celeste, infernal. Não sei se depende apenas dos outros ou de nós mesmos também. Nosso controle sobre nossas atitudes pode ser o estopim para todo o resto. Talvez seja melhor colocarmos essa responsabilidade sobre ambos os ombros. Sabe aquele dia que tem tudo para dar certo e, no último instante, desaba? Acontece. Aliás, mais do que imaginam todos. Até nós mesmos... A pergunta que permanece é se desabou por falta de resistência de nossos próprios ombros ou porque realmente houve sobrepeso? O instinto grita sempre ao outro. Muito mais fácil deslocar a culpa, se é que ela existe, para o mundo do que para nós mesmos. Nossa força é quase sempre centrífuga quando o assunto diz respeito a problemas. Teimamos em querer jogá-los para fora de nossa órbita, espalhando-os e evitando até olharmos demais. Até porque esse sentimento de culpa também tem suas lendas. Existe ou não? Deveria existir ou não? O mundo está ai para ser vivido, mas não está à mercê de todos nós. É preciso correr atrás, quebrar a cara, ser feliz e triste, conhecer o doce e o amargo e entender que não é como queremos sempre que assim desejarmos. Afinal, nós sempre queremos e desejamos. Ter sucesso é uma meta hereditária. Crescemos com ela sem nem imaginarmos o contrário. Ninguém deseja frustrações ao outro, exceto nas relações não-amigáveis. Mas no final das contas é uma pena que não tenhamos a idéia de frustração bem próxima, como algo natural. Os monstros crescem muito quando não os conhecemos. E quem nunca sentirá a sensação de aperto no peito e aquilo que conhecemos como ''ih, deu merda!''?
Mas é melhor parar por aqui hoje. O cérebro já se retirou há tempos e as experiências com o fluxo têm limites. Aliás, algumas coisas têm limites. Mas deita aqui, ao lado, bem perto, me deseje boa noite e amanhã continuamos.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Casal

Não sei ao certo sobre o que a teia de palavras quer falar, já que a cabeça não consegue um só instante de paz. O mundo gira na velocidade da luz e os pensamentos parecem bombardear o corpo cansado. São estímulos que não encontram respostas. A mente quer, o corpo pede calma. São assim duas coisas distintas, numa quase ausência de fusões. Tudo isso não fosse o elo que une ambos em uma relação de cumplicidade: não sabem o quanto resistirão. Talvez seja essa a maior certeza dentro da incerteza. Sabem que cedo ou tarde terão que ceder, caindo em um canto qualquer em busca de descanso. A mente ainda insiste, mas o corpo já começa a pedir arrego. Seus movimentos estão frágeis, seus olhos só encontram o brilho próximos às luzes artificiais, a pele está ressecada, assim como seu coração. Antes, tão embebido nos vários líquidos encantados da vida, hoje apenas coberto de pó e saudade. O corpo e a mente, que um dia já compartilharam tantas aventuras e desventuras, hoje são um velho casal, unidos pela necessidade de assim permanecerem, pois sabem que sozinhos já não podem ir. É necessário saber que o outro está por perto, mesmo que não mais ao lado. A mente mais uma vez reluta em desistir, mas o corpo já lhe disse boa noite. Vá, mente, vá descansar. É preciso que amanhã cedo você esteja disposta para acordar seu velho companheiro que está próximo de padecer. Mantenha-se saudável, permaneça trabalhando, mesmo que em alguns momentos seu trabalho resulte em apertos no peito e dores no coração. Saiba que mesmo gerando aquilo que chamamos de ''tristeza'', nos dá a certeza de que ainda continuamos vivos.